TESTEMUNHA OCULAR
DE UMA LENDA
Domingas Gorda, assim apelidada e
conhecida dos moradores dos pobres
casebres da antiga Praça Getúlio Vargas, onde
situa o Colégio Prof. Benício Prates,
ex-moradora do latifúndio da
Gameleira, fazendão outrora opulento e
famoso, graças ao suor derramado à tortura do tronco, à chibata humilhante e mil
outras torturas impostas ao
inferno cativo, nada é hoje mais que uma
tapara abandonada e mal assombrado, numa dolorosa reafirmação de que o braço escravo é incapaz de construir um
monumento duradouro.
É ali o continente, o paia, a gleba
gentílica de Domingas Gorda, onde ela
ventre-livre nasceu e tanto viveu para relatar
casos como estes que estamos
agora relatando à beira deste foguinho fumarento, ateado com destroços dos
escombros da Casa Grande, da Gameleira.
Domingas Gorda, que pela boca de cinqüenta anos está aqui entre nós,
pesarosa relembra e aponta nas cercanias, uma cuitezeira, uma
cidreira e uma asa-de-papagaio, também
chamada poinsétia, espécie vegetais que ali
ainda vicejam sobre a grama rasteira,
trilhada de caminhos que as formigas cabeçudas abriram para o seu
vaivém cotidiano.
A cuitezeira dava o vasilhame necessário
às lides caseiras do escravo,
substituindo as xícaras de
louça e os canecos de folhas de flanges
de se beber água, leite e jacuba,
merenda do meio dia e reforço ao almoço
desvitalizado, feito de angu e
feijão sem gordura.
Acontecia brotar do trono da cuitezeira
pequenos e mirrados frutos, resultado natural da concorrência de outros
mais robustos e numerosos, agrupados em
torno, mas que afinal também se firmava em autênticos cuitezinhos.
Esses interessantes micro-frutos reclamavam zelo constante
de sinhá, cobiçados que eram para a feitura de primores mini-jóias, com as
bordas protegidas de filigranas de ouro,
repousando as preciosidades sobre
pesinhos de largatixas, do mesmo metal.
Dos frutos de cidreira as escravas aprontavam o gostoso doce de cidrão e ainda uma beberagem
fermentada, misturada com suco de catuabinha, de paladar picante, bebida para
manter o clima das crioulas das senzalas.
Domingas Gorda era ventre-livre, uma
casta de cultivo que não podia ser mais
objeto de troca, uma idéia, um sofisma
de liberdade pressuposta pelo simples acaso de um articulado de lei, garantindo o direito de
ir-e-vir, podendo dissimular
também, sub-repticiamente o parágrafo
acautelador da focinheira presa ao poste de amarração.
Assim Dominas Gorda, liberta que
era, vivia no entanto mais para sinhá
que para os seus manos de epiderme.
Achegada a Casa Grande, conhecia
algumas das disposições de seus amos. E,
por isto mesmo, procurou ser conveniente ao falar de beberagem manipulada com o emprego do fruto da cidreira misturado
com a seiva da catuaba do cerrado, planta
de supostas virtudes afrodisíacas a “ Anemopaegma glaucum”, de Mart,
deixando a conversa assim, no ar, indefinida. Mas, posteriormente, a
escravidão, que aconteceram nesta
cidade, quando aqui era um arraial cercado para velho-ventre conscientizando a
seu modo, relembra o tráfico negreiro não se preocupando naquela época em
equilibrar os seus carregamentos,
consideradas as unidades sexuais, o que
ocasionou uma lotação maior de elementos
do sexo masculino.
Os senhores de escravos, por sua vez, capacitaram-se muito tarde da
lamentável falha e de que também seria
improvável a prática do homossexualismo
entre os africanos, como uma diretiva paleodora. Tudo isso concorreu para agravar
a situação do senzalismo no
Brasil, alargando o caminho da abolição, cada dia mais efervescente.
O banzo já dominava nas senzalas.
Além da escassez originária da mulher
cativa, desde a chegada dos primeiros
transportes negreiros no século XVI, a restrição aconselhada pelo jesuíta à
servidão de índios, dificultou o convívio e o Ca núbio natural do preto com o
autóctone.
Já era evidente a impaciência do
escravo.
Em l850, a lei Euzébio de Queiroz
suspende a entrada de escravos no Brasil.
Era a morte de imigração da Venus
negra.
A campanha abolicionista continua
vigorosa e impertinente, mas, quando se tornaria uma realidade?
Prudentes e cautelosos, os senhores
de escravos se desdobram em expedientes
os mais capciosos e, às vezes,
inteligentes e oportunos.
Domingas Gorda escutara os cochichos de sinhô e de sinhá. Eles já se
decidiam a tentar nos seus domínios a experiência do criatório
ou câmara de criação de escravos, ainda que num paredes-meias coma Casa Grande.
Pensavam, na verdade, num modelo de criação mais racional e
sem exploração do serviço braçal e gratuito, sem revelarem, no entanto,
a natureza especulativa do empreendimento.
Mas, Domingas Gorda ouviu tudo e tudo contou com as suas circunstâncias realísticas, todo o seu
colorido humanista, nem tanto heterodoxo ao formalismo do mundo escravista de então, em confrontação com a pirâmide servil .
Contou ela assim:
__”Sinhô marcou ali debaixo da
gameleira e mandou levantar um salão e rebuçou de capim, fazendo as paredes de pau a pique e barreadas com
estrume de gado. Tem uma entrada largona, servindo de porta. Lá dentro é um chão, sem paredes de repartimento. De tanto em tanto
ficam dez giraus em cima de forquilhas
fincadas ao chão , forradas de couro de gado. Enxergão e travesseiro, ninguém reclamava.”
__’ todas as notes
as negras iam para lá. Os negros
acompanhavam em seguida.
__” Onde vai
as vacas vai os bois atrás” __ Iam eles cantando. Tocando as suas violas,
batucando.
“Ninguém
levava candeia. Só era visto o fogo dos cachimbos e as faíscas que os
fuzis riscavam das pedras dos isqueiros.
__”Também eu
andei ajudando por lá uns meses , mas um dia Sinhá me chamou e me mandou para a cozinha de
cozinha sabão, reclamando que eu não
prestava para nada, porque tinha nascido menina.”
__” Menina... bão-bão!”
“Sucedia nascer dessas mixórdias nas senzalas uns
meninos brancos, dos olhos agateados, mas Sinhá explicava sempre que aquilo
era obra de espírito santo de orelha.. E por
isto mesmo toda vez que Sinhô aparecia
por lá nós ficava olhando pra orelha dele”...
“As escravas que dormiam nessas senzalas, quando ganhavam os croioulinhos, Sinhô vendia
cada uma delas para o camboeiro
pelo mesmo dinheiro que custavam cinco escravos dos mais trabalhadores. E os
retratos dessas negras apareciam
depois nuns quadros grandes, muito bonitos, feitos de óleo a cara, o corpo., a carapinha e as
roupas delas, com o filho louro de Sinhá esticando-lhe as tetas, e o negrinho
sentado ao lado, muito bem vestidinho e limpinho, que era um benza-a-Deus”.
“Mas era isso mesmo, Sinhá era muito
rica e orgulhosa, não ia deixa o filho dela na companhia de um pretinho sujo, como também a mãe.”
Eram
as mães pretas dos abolicionistas.
__ Mas nunca esqueci de muitas
coisas de ficar a gente triste, nos
tempos da dentro da velha fazenda da Gameleira. Ali perto daquele pé de asa-de-papagaiom, tinha
uma senzala, onde uma escrava nuito
sirigaita ganhou um criolinho dos olhos agateados, mas alguém arengou pra Sinhá
e ela mandou judiá com a mãe e jogá o inocente naquele brejo que ainda
existe até hoje, e ele chorou a noite
toda até o dia clariá, até morrer de frio” É por isto que o lugar ficou
chamando “Chora Menino”, e até hoje,
quando a lua é bonita e o frio ta cortando a pele da gente, o anjinho ainda
chora”.
__”Na minha vida de escrava vente - livre, eu conto, não estou lembrada de um instantinho de felicidade ( estou
emitindo)... Um dia os negros saíram
correndo das senzalas, juntos com outros que vinham chegando, uma
misturada de negros, negras e mulatos, rindo, saltando, pulando e gritando,
tocando violas e tambores; soltando as
vacas dos currais e os porcos dos chiqueiros; depois entraram pela Casa grande
adentro, sem licença dos vigias e dando umbigadas no Sinhô, Sinhas e
Sinhazinhas. Fiquei a pensar que a
escravatura de tanto sofre,
estava ficando doida da cabeça, mas aí
Sinhô apareceu com um papel na mão, acenando que acenava sem parada, e
leu pra todo mundo ouvir a oração mais pequenina do mundo (no) tamanho, a mais
Alex bonita tinha falado, tão triste,
tão triste:”
“ É
declara extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil”
“Revogam-se as disposições em
contrário”
“Dado
no Palácio do Rio de Janeiro, l3 de mai
FONTE: MACEDO, Ubirajara Alves. Migalhas Folclóricas. Pág. 38-40.
FONTE: MACEDO, Ubirajara Alves. Migalhas Folclóricas. Pág. 38-40.
Espetacular!!!
ResponderExcluir