sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Relato de Dona Domingas Gorda, sra. que fez o parto do menino que originou a lenda do "CHORA MENINO"



 TESTEMUNHA OCULAR 
DE UMA LENDA
    
 
   Domingas Gorda, assim apelidada e conhecida dos moradores  dos pobres casebres da antiga Praça Getúlio Vargas, onde  situa o Colégio Prof. Benício Prates,  ex-moradora  do latifúndio da Gameleira,  fazendão outrora opulento e famoso, graças ao suor derramado à tortura do tronco, à chibata humilhante  e mil  outras torturas  impostas ao inferno cativo, nada é hoje mais que  uma tapara abandonada e mal assombrado, numa dolorosa  reafirmação de que o  braço escravo é incapaz de construir um monumento duradouro.
      É ali o continente, o paia, a gleba gentílica de Domingas Gorda,  onde ela ventre-livre nasceu e tanto viveu para relatar  casos como estes  que estamos agora relatando à beira deste foguinho fumarento, ateado com destroços dos escombros  da Casa Grande, da Gameleira.
       Domingas Gorda, que pela boca  de cinqüenta anos está aqui entre nós, pesarosa  relembra  e aponta nas cercanias, uma cuitezeira, uma cidreira e uma  asa-de-papagaio, também chamada poinsétia, espécie vegetais que ali  ainda vicejam sobre a grama rasteira,  trilhada de caminhos que as formigas cabeçudas abriram para o seu vaivém  cotidiano.
       A cuitezeira dava o vasilhame necessário às lides caseiras do escravo,  substituindo as xícaras  de louça  e os canecos de folhas de flanges de se  beber água, leite e jacuba, merenda do meio dia e reforço ao almoço  desvitalizado,  feito de angu e feijão sem gordura.
       Acontecia brotar do trono  da cuitezeira  pequenos e mirrados frutos, resultado natural da concorrência de outros mais robustos e numerosos,  agrupados em torno,  mas que afinal também  se firmava em autênticos cuitezinhos.
       Esses interessantes  micro-frutos reclamavam zelo  constante  de sinhá,  cobiçados que eram  para a feitura de primores mini-jóias, com as bordas protegidas de filigranas de ouro,  repousando  as preciosidades sobre pesinhos de largatixas, do mesmo metal.
       Dos frutos de cidreira as escravas  aprontavam o gostoso  doce de cidrão e ainda uma beberagem fermentada, misturada com suco de catuabinha, de paladar picante, bebida para manter o clima das crioulas das senzalas.
       Domingas Gorda era ventre-livre, uma casta de cultivo  que não podia ser mais objeto de troca,  uma idéia, um sofisma de liberdade pressuposta pelo simples acaso de um articulado  de lei, garantindo o direito de ir-e-vir,  podendo dissimular também,  sub-repticiamente o parágrafo acautelador da focinheira presa ao poste de amarração.
        Assim Dominas Gorda, liberta que era,  vivia no entanto mais para sinhá que para os seus manos de epiderme.
        Achegada a Casa Grande, conhecia algumas  das disposições de seus amos. E, por isto mesmo, procurou ser conveniente ao falar de beberagem manipulada  com o emprego do fruto da cidreira misturado com a seiva da catuaba do  cerrado, planta de supostas virtudes afrodisíacas a “ Anemopaegma glaucum”,   de Mart,  deixando a conversa assim, no ar, indefinida. Mas, posteriormente, a escravidão, que aconteceram  nesta cidade, quando aqui era um arraial cercado para velho-ventre conscientizando a seu modo, relembra o tráfico negreiro não se preocupando naquela época em equilibrar  os seus carregamentos, consideradas as unidades sexuais,  o que ocasionou  uma lotação maior de elementos do sexo masculino.
        Os senhores de escravos,  por sua vez, capacitaram-se muito tarde da lamentável falha  e de que  também seria  improvável  a prática do homossexualismo entre os africanos, como uma diretiva paleodora. Tudo  isso concorreu  para agravar  a situação do senzalismo  no Brasil, alargando o caminho da abolição, cada dia mais efervescente.
         O banzo já dominava nas  senzalas.
         Além da escassez originária da mulher cativa,  desde a chegada dos primeiros transportes negreiros no século XVI, a restrição aconselhada pelo jesuíta à servidão de índios, dificultou o convívio e o Ca núbio natural do preto com o autóctone.
          Já era evidente a impaciência do escravo.
          Em l850, a lei Euzébio de Queiroz suspende a entrada de escravos no Brasil.
          Era a morte de imigração da Venus negra.
          A campanha abolicionista continua vigorosa e impertinente, mas, quando se tornaria uma realidade?
          Prudentes e cautelosos, os senhores de escravos se desdobram em expedientes  os mais capciosos e,  às vezes, inteligentes e oportunos.
          Domingas Gorda escutara  os cochichos de sinhô e de sinhá. Eles já se decidiam  a tentar  nos seus domínios a experiência do criatório ou câmara de criação de escravos, ainda que num paredes-meias coma Casa Grande. Pensavam,  na verdade,  num modelo de criação mais racional e sem  exploração do serviço  braçal e gratuito, sem revelarem, no entanto, a natureza especulativa do empreendimento.
         Mas, Domingas Gorda  ouviu tudo e tudo contou com as  suas circunstâncias realísticas, todo o seu colorido humanista, nem tanto heterodoxo ao formalismo do mundo  escravista de então,  em confrontação  com a pirâmide  servil .
         Contou ela assim:
          __”Sinhô marcou ali debaixo da gameleira e mandou levantar um salão e rebuçou de capim, fazendo  as paredes de pau a pique e barreadas com estrume de gado. Tem uma entrada largona, servindo de porta. Lá dentro  é um chão, sem  paredes de repartimento. De tanto em tanto ficam dez giraus em cima de forquilhas  fincadas ao chão , forradas de couro de gado. Enxergão  e travesseiro, ninguém reclamava.”
          __’ todas  as notes  as negras iam para lá.  Os negros acompanhavam em seguida.
__” Onde vai as vacas  vai os bois atrás” __ Iam  eles cantando. Tocando as suas violas, batucando.
      “Ninguém  levava candeia. Só era visto o fogo dos cachimbos e as faíscas que os fuzis riscavam  das pedras  dos isqueiros.
       __”Também  eu  andei ajudando por lá uns meses , mas um dia  Sinhá me chamou e me mandou para a cozinha de cozinha sabão, reclamando que eu não  prestava para nada, porque tinha nascido menina.”
         __” Menina... bão-bão!”
        “Sucedia  nascer dessas mixórdias nas senzalas uns meninos brancos, dos olhos agateados, mas Sinhá explicava sempre que aquilo era   obra de espírito santo de orelha.. E por isto mesmo toda vez que  Sinhô aparecia por lá nós ficava olhando pra orelha dele”...
         “As escravas  que dormiam nessas  senzalas, quando ganhavam   os croioulinhos,  Sinhô vendia  cada uma delas  para o camboeiro pelo mesmo dinheiro que custavam cinco escravos dos mais trabalhadores. E os retratos dessas negras apareciam  depois  nuns quadros  grandes, muito bonitos, feitos  de óleo a cara, o corpo., a carapinha e as roupas delas, com o filho louro de Sinhá esticando-lhe as tetas, e o negrinho sentado ao lado, muito bem vestidinho e limpinho, que era um benza-a-Deus”. “Mas era isso mesmo,  Sinhá era muito rica e orgulhosa, não ia deixa o filho dela na companhia de um  pretinho sujo,  como também a mãe.”
             
 Eram as mães pretas dos abolicionistas.
             
            __ Mas nunca esqueci de muitas coisas  de ficar a gente triste, nos tempos da dentro da velha fazenda da Gameleira. Ali  perto daquele pé de asa-de-papagaiom, tinha uma  senzala, onde uma escrava nuito sirigaita ganhou um criolinho dos olhos agateados, mas alguém arengou pra Sinhá e ela mandou judiá com a mãe e jogá o inocente naquele brejo que ainda existe  até hoje, e ele chorou a noite toda até o dia clariá, até morrer de frio” É por isto que o lugar ficou chamando “Chora Menino”, e até hoje, quando a lua é bonita e o frio ta cortando a pele da gente, o anjinho ainda chora”.
        __”Na minha vida de escrava  vente - livre, eu conto,  não estou lembrada de  um instantinho de felicidade ( estou emitindo)... Um dia os negros saíram  correndo das senzalas, juntos com outros que vinham chegando, uma misturada de negros, negras e mulatos, rindo, saltando, pulando e gritando, tocando violas e tambores;  soltando as vacas dos currais e os porcos dos chiqueiros; depois entraram pela Casa grande adentro, sem licença dos vigias e dando umbigadas no Sinhô, Sinhas e Sinhazinhas. Fiquei a pensar que a  escravatura de tanto sofre,  estava ficando doida da cabeça, mas aí  Sinhô apareceu com um papel na mão, acenando que acenava sem parada, e leu pra todo mundo ouvir a oração mais pequenina do mundo (no) tamanho, a mais Alex bonita tinha falado,  tão triste, tão triste:”


    “ É  declara extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil”
          
          “Revogam-se as disposições em contrário”

          “Dado  no Palácio do Rio de Janeiro, l3 de mai


FONTE: MACEDO, Ubirajara Alves. Migalhas Folclóricas. Pág. 38-40.

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